ENCHENTES RS | A solidariedade da classe trabalhadora às famílias atingidas segue viva

Apoio dos movimentos populares aos atingidos inclui acolhimento, doações de alimentos e sementes, articulação e incidência política

Moradoras do bairro Sarandi, em Porto Alegre, que estão lutando, junto ao MAB, por moradia digna para os atingidos pelas enchentes de 2024. Foto: Francisco Proner / MAB
Moradoras do bairro Sarandi, em Porto Alegre, que estão na luta, junto ao MAB, por moradia digna para os atingidos pelas enchentes de 2024. Foto: Francisco Proner / MAB

As águas baixaram, os holofotes da mídia mudaram de foco, a vida seguiu. Os efeitos de uma das maiores tragédias ambientais do país, porém, continuam impactando a rotina de milhares de famílias no Rio Grande do Sul, um ano após a catástrofe. As enchentes que devastaram o estado em 2024 deixaram um rastro de destruição e perdas irreparáveis, expondo os limites de um modelo econômico predatório — e, ao mesmo tempo, revelando a força da solidariedade organizada.

Diante do colapso dos serviços públicos e da ausência de uma resposta imediata do Estado, movimentos populares, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e outras organizações sociais foram fundamentais para garantir ajuda emergencial, oferecendo refeições, água e acolhimento à população. Mesmo após a fase crítica, esses movimentos seguem atuando no estado, lutando pela reparação e reconstrução da vida das comunidades atingidas por meio de articulação, mobilização e incidência política, um ano após as enchentes.

Solidariedade como princípio da classe trabalhadora

Segundo Luiz Dalla Costa, integrante da coordenação do MAB, a solidariedade faz parte da própria história da classe trabalhadora – “não como um ideal moral ou utópico, mas como uma necessidade concreta. Por quê? Porque ninguém trabalha ou produz sozinho. O trabalho é, por natureza, social e coletivo. Tudo o que é produzido resulta de uma rede de esforços solidários, em que cada pessoa contribui com uma parte”, explica.

O dirigente afirma que é a própria prática do trabalho que conecta as pessoas. “Pense, por exemplo, na roupa que você veste: alguém produziu o tecido, outro criou a tinta, outro cortou, costurou, embalou, transportou e, por fim, alguém vendeu. É um processo inteiramente coletivo, uma verdadeira cadeia de solidariedade entre trabalhadores e trabalhadoras, cada um com sua função”, exemplifica.

Segundo ele, isso explica como pessoas em situação de vulnerabilidade, após a tragédia climática no Rio Grande do Sul, conseguiram se organizar coletivamente para formar uma rede de e mútuo, como nas cozinhas solidárias – que distribuíam refeições aos atingidos.

“A prática coletiva do trabalho não transforma apenas os produtos materiais, mas também as relações humanas. Por isso, quem vive do trabalho costuma sentir como sua a dor e a injustiça que afetam os outros. A solidariedade entre os trabalhadores não é exceção — é cotidiana, comum. Ela se opõe à lógica da competição e se baseia na cooperação. Diferente da caridade, que muitas vezes parte de cima para baixo e reproduz relações de poder, a solidariedade nasce da igualdade e do reconhecimento mútuo”, avalia Costa.

Jacira Ruiz, secretária-geral da Cáritas do Rio Grande do Sul, afirma que sua organização teve diversos espaços e equipes atingidos pelas enchentes, mas nada impediu que a solidariedade se materializasse em ações concretas junto às famílias. “Nos vales do Taquari e do Rio Pardo, a Missão Sementes de Solidariedade, formada por mais de 20 organizações, foi ao encontro de famílias de pequenos agricultores e agricultoras levando abraço, escuta, sementes e mudas diversas para reconstituir hortas, roças, pomares e áreas de vegetação nativa. Uma forma potente e bonita de seguir com esperança ativa.”

Para além da emergência: organização e escuta

Alexania Rossato, integrante da coordenação do MAB, em ato em Porto Alegre. Fotos: Jorge Leão
Alexania Rossato, integrante da coordenação do MAB, em ato em Porto Alegre. Fotos: Jorge Leão

ada a fase emergencial, atualmente o MAB está envolvido na construção de uma pauta concreta de reivindicações das comunidades atingidas, apresentada às três esferas do poder público – federal, estadual e municipal. O documento foi entregue pela primeira vez em agosto de 2024, e recentemente atualizado com demandas que vão desde a reparação de perdas materiais até o fortalecimento de políticas de moradia e prevenção de desastres.

Na prática, o movimento realiza um trabalho cotidiano de escuta, acolhimento e reconstrução da vida comunitária. Um exemplo são as oficinas de Arpilleras (telas bordadas), que reúnem mulheres atingidas para expressar, com tecido e agulha, a dor, o trauma, a força coletiva e a esperança. As peças estão em exposição na Biblioteca Pública do Estado do RS, no MASP, em São Paulo, e, em breve, também no Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em outras mostras no Brasil e no exterior.

Direito à moradia é a principal reivindicação dos atingidos pelas enchentes. Foto: Jorge Leão
Direito à moradia é a principal reivindicação dos atingidos pelas enchentes. Foto: Jorge Leão

Atuação na Justiça e no diálogo institucional

Para apoiar os atingidos na busca por seus direitos – seja em relação à moradia, indenização ou segurança – o MAB também atua na esfera jurídica. A Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (ANAB) é coautora de uma Ação Civil Pública junto ao Ministério Público Federal. A ação cobra a participação ativa das comunidades atingidas no processo de reconstrução do Vale do Taquari.

Segundo a coordenação do MAB, os atingidos têm tido pouco o à informações fundamentais, como o redesenho do plano diretor das cidades, critérios para reparações e indenizações e a construção de planos emergenciais. Por isso, a ação busca garantir protagonismo às comunidades em um processo historicamente centralizado e pouco transparente.

A situação de violação de direitos já atraiu a atenção internacional. Em dezembro de 2024, o perito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Javier Palummo, visitou regiões atingidas, como Lajeado e Estrela. Ele retornará em 5 de maio de 2025, quando deverá apresentar recomendações formais ao Estado brasileiro, além de participar de um seminário promovido pelo MAB, em parceria com a Faculdade de Direito da UFRGS, sobre crise climática e direitos dos atingidos.

Cozinhas solidárias e o aprendizado da coletividade

Marisa Wassem, atingida de Arroio do Meio (RS), com marmitas distribuídas nas cozinhas solidárias. Foto: Francisco Proner / MAB
Marisa Wassem, atingida de Arroio do Meio (RS), com marmitas distribuídas nas cozinhas solidárias. Foto: Francisco Proner / MAB

O trabalho de fortalecimento da organização popular para a busca de direitos dos moradores teve início ainda durante a fase emergencial após a tragédia, quando foram implementadas as cozinhas solidárias. Durante e após a enchente, essas cozinhas distribuíram marmitas com refeições quentes, cestas de alimentos, água potável e itens de primeira necessidade, mas também serviram de espaço de articulação e formação de grupos de atingidos.

Segundo Alexania Rossato, integrante da coordenação nacional do MAB, as cozinhas solidárias organizadas em parceria com MTST, MPA, Levante Popular da Juventude, MST, T e outras entidades serviram 188 mil refeições, entre 19 de maio e 12 de outubro de 2024. Militantes do MAB vindos de várias partes do país atuaram em Porto Alegre, Canoas, Arroio do Meio, Estrela e Lajeado. Na capital, a Cozinha Solidária da Azenha, em parceria com o MTST e a Periferia Feminista, distribuiu cerca de 2 mil marmitas diárias. “As cozinhas não levaram só comida. Levaram acolhimento, levaram esperança a quem quase perdeu tudo”, afirma Rossato.

Cozinhas solidárias foram implementadas em parceria com diversos movimentos sociais. Foto: Comunicação MAB
Cozinhas solidárias foram implementadas em parceria com diversos movimentos sociais. Foto: Comunicação MAB


Patrícia Silva, moradora de Canoas, reforça essa dimensão: “No início, estávamos completamente perdidos, sem saber nossos direitos, sem direção. Ver nossa casa revirada foi uma experiência terrível. Mas a chegada do MAB e da Cozinha Solidária fez toda a diferença. O trabalho deles foi excelente, desde o apoio com as marmitas até a força e o conhecimento que nos aram. O acolhimento que recebemos foi fundamental. Eles nos ensinaram sobre nossos direitos e deveres, nos mostraram que podemos lutar juntos. O MAB vai à frente, mas a gente caminha junto, apoiando uns aos outros. No pós-enchente, essa rede de apoio foi essencial. Conhecer o MAB foi transformador. Me redescobri com eles, continuam sendo muito importantes na nossa vida.”


Além das refeições, centenas de caminhões com cestas básicas, água potável, colchões, roupas, sapatos, produtos de limpeza e higiene foram distribuídos. Os números exatos são difíceis de calcular – e talvez irrelevantes diante da grandeza do esforço coletivo que mobilizou comunidades inteiras.

Missão “Sementes de Solidariedade” se torna permanente diante da crise climática


Se nas cidades a fome foi enfrentada com marmitas e abrigos, no campo a solidariedade chegou em forma de sementes. A Missão Sementes de Solidariedade é uma articulação criada para apoiar agricultores familiares e camponeses afetados pelas enchentes de 2023 e 2024. A iniciativa surgiu com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Instituto Cultural Padre Josimo (IJ), a Cáritas Brasileira e a Comissão Pastoral da Terra (T), e hoje reúne 24 organizações em ações permanentes.

Encontro de avaliação das ações da Missão no final de 2024, no Convento Franciscano São Boaventura, que fica no município de Imigrante (RS). Foto: Corbari / MPA

O objetivo inicial era apoiar a recuperação da produção de subsistência e, posteriormente, da produção para comercialização. Mas com o tempo, a missão ou a incluir a organização comunitária, o o a políticas públicas e o mapeamento de demandas no campo.

Para Frei Sérgio Görgen, diretor do IJ, a missão vai além da doação de sementes: “A Missão Sementes da Solidariedade foi uma forma encontrada pelos Movimentos Sociais do Campo e Pastorais da Igreja Católica de estar junto com as famílias agricultoras atingidas pelas enchentes dos rios Taquari, Jacuí e Pardo, compartilhando solidariedade e distribuindo sementes para recomeçar a vida. E semente é mais que uma realidade física, é símbolo de esperança, é vida que renasce”, afirma.

Diante da intensificação dos eventos climáticos extremos, a missão ou de uma ação emergencial para uma estrutura permanente, pronta para responder de forma coordenada a futuras tragédias. A articulação já atua com base no conceito de “refugiados climáticos”, nomeando a realidade de milhares de famílias que, mesmo meses após as enchentes, continuam vivendo em condições precárias, sem o pleno a moradia, renda e políticas públicas.

Para o MAB, o que está em jogo não é apenas a superação de uma enchente, mas a reconstrução de uma relação social mais justa. A tragédia climática no Rio Grande do Sul escancarou a vulnerabilidade imposta pelo modelo de desenvolvimento baseado na destruição ambiental e na exclusão social. A resposta solidária dos movimentos populares mostra que há outro caminho: coletivo, de baixo para cima, com organização e participação popular.

“Foi uma rede de solidariedade imensa. Estivemos lado a lado com muitos movimentos e entidades. Seria até injusto tentar nomear todos com o risco de esquecer alguém”, conclui Rossato.

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