Caatinga: entre a ameaça de megaprojetos e a resistência do Semiárido

Expansão de energias renováveis e mineração intensificam desertificação e conflitos na Caatinga, enquanto comunidades atingidas buscam no recaatingamento um caminho de recuperação

Vegetação da Caatinga no município de Sento Sé (BA). Foto: Willianilson Pessoa
Vegetação da Caatinga no município de Sento Sé (BA). Foto: Willianilson Pessoa

A Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, é uma área de vasta diversidade que cobre cerca de 10% do território nacional, presente principalmente no Nordeste do país. Com uma série de espécies endêmicas, tanto de fauna quanto de flora, o bioma é caracterizado pelo clima Semiárido, com vegetação adepta à escassez de água e com solos ricos em minerais. Influenciada pelo Cerrado e pelas florestas Amazônica e Atlântica, a Caatinga tem seu nome derivado do tupi-guarani e significa “floresta branca” – uma referência à característica de perder as folhas durante o período de seca.

Apesar da sua importância, o bioma enfrenta ameaças significativas devido à exploração humana e às mudanças climáticas. Símbolo da resistência das populações do Semiárido, a Caatinga encontra-se, mais uma vez, no epicentro da luta contra grandes empreendimentos que se impõem sobre as comunidades tradicionais. Se antes a construção de hidrelétricas como Sobradinho submergiu o território e forçou a remoção de milhares de famílias, hoje o avanço de empreendimentos como os parques eólicos e a mineração ameaçam o pouco que ainda resta da sua integridade.

Em nome da transição energética e da mineração, o modelo de “desenvolvimento” traz consigo as mesmas injustiças sociais que conhecemos com as construções de barragens: degradação ambiental, conflitos constantes, terras griladas e, o pior, uma nova forma de desapropriação que coloca as comunidades mais vulneráveis, aquelas que menos contribuem para as mudanças climáticas, no centro da crise socioambiental que as grandes corporações se recusam a resolver efetivamente.

Os megaprojetos que hoje invadem a Caatinga, sob o pretexto de combater as mudanças climáticas, são, na verdade, parte da engrenagem que alimenta essa crise. A instalação desenfreada de parques eólicos, usinas solares e mineradoras ignora os limites do bioma, desrespeita os saberes das comunidades tradicionais e impõe uma nova camada de desigualdade. Esses empreendimentos, ao desmatar áreas sensíveis, desequilibram ecossistemas já fragilizados e agravam, por exemplo, o processo de desertificação.

Desertificação

Um estudo realizado em novembro de 2023, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), registrou, pela primeira vez, a ocorrência de uma região árida no Brasil, abrangendo cinco municípios baianos: Juazeiro, Abaré, Chorrochó, Macururé e Curaçá. Marcostony da Cruz, especialista em recursos hídricos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que “a desertificação é um processo de alteração ambiental que leva à transformação de um local, decorrente das questões naturais somadas às ações humanas em regiões áridas ou semiáridas. Esse fenômeno se manifesta através da perda de vegetação, erosão e diminuição da fertilidade do solo e a redução da disponibilidade de água”.

De acordo com o Instituto Nacional do Semiárido (INSA), o processo de desertificação atinge 85% do Semiárido brasileiro. Porém, apesar das condições áridas que as regiões se encontram, não é possível classificá-las como regiões desérticas – situação ainda mais delicada e com clima mais seco. O processo de desertificação, por outro lado, já causa a perda de fertilidade do solo e diminuição da biodiversidade.

Esse fenômeno não apenas ameaça a biodiversidade única da Caatinga, mas também impacta as populações que dependem dos bens naturais para a sua subsistência. Esse é o caso da agricultora Ana Lúcia Silva, moradora da comunidade Água Branca, em Juazeiro (BA), que relata as dificuldades que tem enfrentado com esse processo. “Tem sido muito difícil, porque o nosso modo de vida tem se alterado. Não conseguimos plantar e colher como antes. E nós, mulheres agricultoras, somos as mais atingidas. No dia a dia percebemos o quanto a Caatinga tem sofrido, o quanto não encontramos mais algumas espécies de plantas e o quanto isso nos afeta diretamente na criação de animais e no plantio”, relata.

Regimento das chuvas

Pesquisas recentes indicam que a dinâmica pluviométrica está ando por alterações em algumas regiões devido às mudanças climáticas. Essas mudanças elevam a temperatura da atmosfera inferior, intensificando a evaporação e aumentando a quantidade de vapor no ar. Isso resulta em uma maior probabilidade de precipitações. Marcostony esclarece que “comparando historicamente a quantidade de chuva nesse território, não há uma grande alteração. O que tem acontecido na verdade é uma mudança no regime dessa chuva, no período chuvoso, que não é mais o mesmo”.

Esse regime tem prejudicado o plantio e a colheita de agricultores, em decorrência dos baixos índices pluviométricos. “As chuvas irregulares acabam dificultando as atividades na agricultura. Havia a cultura de plantar e colher em períodos específicos e agora isso não acontece, porque algumas plantações, como a da mandioca, não estão se adequando à realidade”, relata a agricultora.

Ana Lúcia Silva, agricultora de Juazeiro (BA). Foto: Arquivo Pessoal
Ana Lúcia Silva, agricultora de Juazeiro (BA). Foto: Arquivo Pessoal

Segundo relatório do Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em fevereiro de 2024, as mudanças do clima estão provocando impactos irreversíveis para a natureza e para as pessoas. O relatório aponta que 3,6 bilhões de pessoas vivem em condições altamente vulneráveis às mudanças climáticas. O que se reflete no cotidiano de Ana Lúcia, que conta sobre as dificuldades de trabalhar na roça em condições térmicas elevadas: “Os dias estão mais quentes. A gente molha as plantas e a evaporação da água ocorre de forma muito rápida, logo temos que repor a água, mas não chove”, declara.

Recaatingamento

Com o objetivo de mitigar os danos provocados pelo processo de desertificação da Caatinga através do uso sustentável dos seus bens naturais, o Recaatingamento surge como uma das soluções que as organizações têm apresentado para lidar com esse problema. Luís Almeida, engenheiro agrônomo e colaborador do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), explica a importância dessa iniciativa nas comunidades como uma metodologia de recuperação e conservação da Caatinga, que é feita em parceria com os povos e comunidades tradicionais. “Essa metodologia leva em consideração as questões ambientais, sociais, econômicas e culturais do território, e tem como objetivo um conjunto de ações que apontam uma convivência harmoniosa entre as populações e o bioma. Portanto, a partir dessa construção coletiva, se torna essencial para o bioma e as populações que vivem nele”, esclarece.

Luís Almeida em formação sobre recaatingamento. Foto: Arquivo IRPAA
Luís Almeida em formação sobre recaatingamento. Foto: Arquivo IRPAA

Ana Lúcia, que vive em uma comunidade beneficiada pelo projeto Recaatingamento, descreve sua experiência ao refletir sobre os efeitos do projeto em sua vida e na comunidade. “A Caatinga tem ado por um momento difícil. Então, replantando as espécies desse bioma, e entendendo a nossa relação enquanto povo com a área, nos fortalece. Além disso, as formações, os intercâmbios e a luta pelas políticas públicas nas comunidades, inovam as nossas práticas e deixam a Caatinga mais forte”.

O Recaatingamento mostra que outra convivência com o Semiárido é possível, valorizando os saberes ancestrais, democratizando o o à terra e à água e enfrentando a desertificação com justiça socioambiental. A Caatinga é lar de milhares de famílias, protetora de saberes e biodiversidade únicos, e não pode continuar sendo tratada como zona de sacrifício para abastecer o capital. É preciso romper com a lógica que põe o lucro acima da vida e exigir que a transição energética seja popular, descentralizada, agroecológica e enraizada nos territórios. Defender a Caatinga transcende um dever ecológico: é uma trincheira política em nome da vida.





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